Conheça a cantora Ane Êoketu

Por Vale do Piancó -PB em 06/02/2023 às 18:07:19

Percussionista, cantora, compositora e apaixonada pela cultura popular brasileira. Sergipana, mas criada na periferia do Distrito Federal, em São Sebastião. Anne Caroline Vasconcelos Bispo, a Ane Êoketu, de 32 anos, se percebeu como artista antes mesmo de se reconhecer como pessoa. Isso porque, a mãe não a deixa esquecer de como ela “gostava de brincar de cantora” quando criança. Um enorme presságio. Hoje, dona de uma das vozes mais potentes do Distrito Federal, ela comemora o lançamento de seu primeiro álbum, "Eu Já Passei Pelo Fogo", nesta segunda-feira (6).

No lançamento da coluna “Além do Quadradinho - Cultura por toda parte”, que vai apresentar a história de talentosos artistas de todas as áreas culturais do DF às sextas-feiras, conheça a história desta grande artista, que batalha todos os dias para ocupar seu espaço.

Quando a Ane se percebeu como artista?

Acho que me percebi artista antes mesmo de me perceber gente. Digo isso baseado em alguns relatos que minha mãe traz de quando eu era criança. Meus pais e tios sempre comentam que minha brincadeira preferida quando pequena era 'brincar de ser cantora' (risos). Mas, meu primeiro encontro com a arte foi dentro das rodas de capoeira que participava quando criança.

Como você se sentiu com esse contato com a capoeira, que é uma dos grandes símbolos de combate e resistência da nossa cultura?

A capoeira me causava uma espécie de fascínio sem explicação. A luta/dança que, mal sabia eu que não era apenas isso, já era a música e também a ginga inerente ao povo preto me chamando. Essa prática me apresentou aos tambores, à percussão e ao canto. Foi minha escola. Assim, entre as cantigas de roda, atabaques e berimbaus, comecei a adquirir consciência sobre minha identidade e sobre meus talentos. A partir disso, nunca mais tirei o tambor das mãos. Comecei a comprar ou ganhar instrumentos e aprendi sozinha, em casa brincando, nada muito sério. Anos depois, já com uns 20 anos de idade, comecei a participar de projetos de percussão e a me inserir na cena até que recebi um convite para integrar uma banda e, a partir daí, comecei a atuar profissionalmente.

Como foi a escolha do nome artístico? 

Eu precisei criar meu nome artístico por orientação de alguns produtores, pois meu nome de batismo não soava muito comercial.  É muito grande e as configurações possíveis e legais que eu tentei formular com ele já estavam sendo utilizadas. Então, eu emergi na viagem de encontrar um nome que sintetizasse tanto a identidade do som que eu faço, quanto a minha identidade, história e personalidade. 

Deve ser uma grande imersão, porque você precisa encontrar algo que te posicione no mercado e que ao mesmo tempo soe em conjunto com sua personalidade, né? 

Sim… Muito isso. Foi, então, que em 2022 tive a oportunidade de apresentar meu pocket show nas conferências dos festivais CoMA e Favela Talks e após as apresentações recebi comentários de algumas pessoas dizendo que a sonoridade que nós trazíamos para o palco era cheia, parecia que tinha muita gente tocando junto, que era um som de massa, um som de povo. Então comecei a pensar nisso. Ketu, para quem é de religião de matriz africana como eu, é uma nação de Candomblé e é a nação da qual o meu orixá, Oxóssi, é rei. Mas, sobretudo, Ketu é um povo vivo na África até hoje, um povo grandioso e riquíssimo em cultura e sabedoria. Sendo assim, é com a maior reverência do mundo que eu chamo a força desse povo cada vez que subo no palco. Ane e o Ketu. Ane ÊoKetu.

Como foi o processo de desenvolvimento dessa artista? 

Acho que não foi (risos). O processo segue sempre. Acredito que o artista sempre se aprofunda em se construir e em retratar seu tempo. Os tempos sempre mudam, então nós e nossa arte também.

E como você chegou ao seu estilo? 

Eu sou apaixonada pela cultura popular brasileira, as expressões culturais de rua e do povo, principalmente as que têm origem no Norte e Nordeste. Costumo imaginar que essa é a minha maior matéria prima. É daí que eu tento extrair meu trabalho, da brasilidade. A partir disto vou moldando meu estilo…

E quais são suas principais qualidades dentro disso? 

Bem, eu me atento muito para ser uma pessoa empática e receptiva no sentido de captar e ponderar as impressões do outro, sobretudo no trabalho. Não sei se está funcionando, mas estou na disposição aqui (risos). Anotaria isso como uma qualidade, eu acho.

Como acontece seu processo de composição tanto das letras quanto das melodias, já que você também é musicista? 

Ah, pra mim não existe fórmula pronta. Eu costumo compor sozinha. Cada música vai se apresentando de um jeito. Às vezes, eu tenho só uma ideia de tema e mais nada. Nesse caso tem que executar o ofício mesmo, é sentar para escrever, é catar palavra por palavra que faça sentido, que rime e que entre na métrica (não necessariamente tudo isso, pois pode ser livre também) até tudo se ajeitar no final.

Mas também tem canções que apenas “surgem”, né?

Sim! Também acontece aquelas canções que somos inspirados a fazer. Nesse caso, parece que somos apenas um meio, um canal, uma ferramenta utilizada pela “Música”, a obra já sai praticamente pronta. E é incrível quando isso acontece. No meu processo de composição, busco encontrar as melodias na própria letra, as rimas por si só já batucam. Eu não domino nenhum instrumento harmônico, como violão e piano, então vou brincando, cantarolando, meio que, despretensiosamente, buscando ritmos que gosto e outros novos também. Imagino e solfejo arranjos, gravando tudo no celular, e quando vejo, tá pronta.

E quais são suas principais influências, não apenas na música, mas nos demais campos da vida?

Bom, na vida e na música minhas grandes influências são mulheres. Na vida, eu falo sempre de minha mãe e minhas tias pela história de vida difícil e superação para sobreviver, por aprender que o triunfo delas foi a sagacidade, a graça, a resiliência, a vontade de não apenas sobreviver, mas viver de verdade. Tenho muita sorte em tê-las. Já na música, sempre cito nomes importantes, como Cátia de França, as grandiosas Bethânia e Gal. Nos últimos anos, as artistas Juliana Linhares e Josyara surgiram como referências maravilhosas para mim também, mas não posso deixar de citar as amigas artistas aqui da cidade que são grandes influências e inspiração, como Fernanda Jacob, Larissa Umaytá e outras…

Vamos falar do seu álbum, que está prestes a ser lançado e que deve ter sido uma construção incrível. Como surgiu a ideia e como ele foi sendo elaborado?

Em meados de 2019/2020, comecei a sentir o desejo de construir e consolidar um trabalho meu, algo autoral. A ideia desse álbum surgiu quando completei 30 anos. Para contextualizar rapidamente, para quem não entende muito de astrologia (risos), dizem que dos 27 aos 30 de idade, mais ou menos, vivemos um ciclo chamado o 'Retorno de Saturno', que é um fase astrológica em que nossos maiores desafios se apresentam, é quando temos que aprender, seja pelo amor ou pela dor, a entender e respeitar nossos limites, o que é viável e o que não é… bem, nessa época eu sofri muuuito os efeitos desse tal de Retorno de Saturno. (risos)

Sim, muita coisa muda nessa fase da nossa vida… te entendo e concordo. Mas como você recebeu essas mudanças? 

Então, minha vida apresentava um caos em todas as áreas: família, relacionamentos, emocional, tudo.. Eu nasci dia 26/02/1990, numa segunda-feira de Carnaval e completei meus 30 anos dia 26/02/2020, exatamente numa QUARTA-FEIRA DE CINZAS. Eu entendi isso como um sinal… Finalmente findaria aquela fogueira caótica em que eu me encontrava. Tudo ia virar cinzas e eu sairia disso mais madura e transformada. Assim, brincadeiras à parte, eu de fato internalizei essa ideia e essa energia de transformação que, para mim, aparecia representada fortemente no elemento fogo. Mas, passado o Carnaval de 2020, o que aconteceu? Pandemia!

Exatamente algo que, literalmente, ninguém esperava e que, certamente, mudou a vida de, senão todo mundo, de quase todo mundo…


Sim… E, exatamente nesse momento, o caos era em escala mundial e eu tentei processar tudo isso criando o 'Eu Já Passei Pelo Fogo', intuindo, inclusive, nesse nome/título, tirando do baú algumas canções que estavam guardadas e compondo outras durante o isolamento. Eu me entreguei totalmente para isso e estava muito sensível a esse chamado. Eu dormia e sonhava com ideias, passava o dia escrevendo e pensando em meios de viabilizar e materializar esse trabalho. Agora, finalmente, ele está pronto.

É um nome muito forte e, escutando sua história, ele deve ter um significado ainda maior…  

Sim, significa muito o nome 'Eu Já Passei Pelo Fogo'. É um título que resume esse grande e desafiador momento da minha vida, como contei. Um dia, passando por uma página na internet, li um fragmento de texto do Rubem Alves que me inspirou na escolha do nome e dizia mais ou menos assim: “Milho que nunca passou pelo fogo, não vira pipoca. O milho somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer. Pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa". Evoluir, voltar a ser CRIAnça e criar-se. É sobre isso.

O álbum deve significar um grande marco para vocꅠ 

Apesar da ideia do álbum ter partido de um recorte de vida pessoal, acredito que ele representa e abrange muito mais. A interpretação é sempre subjetiva e vai de cada um, mas para mim ele fala sobre as forjas da vida. Traz as questões político-sociais que remexeram o Brasil nesses últimos anos. Mas também fala sobre o fogo das paixões, das relações, das solidões, daquilo que atravessa, do que queima e abrasa o peito. Temas esses que ainda pairam sobre esse período pós-pandêmico, que deixou perguntas no ar, como: "O que vem agora? O que vem depois da “fase do chefão”? Porque eu? Eu já passei pelo fogo".

Tem alguma faixa que você destaca como especial? Qual a razão?

Posso destacar a faixa 'Vem Fogo' que foi a última que compus para esse trabalho. A ideia dessa letra era escrever sobre uma “vingança da cultura popular brasileira” contra toda tentativa de desmonte e apagamento que sofreu nos últimos anos. É a revolta das lendas vivas em ritmo quente de galope (risos).

Qual recado, como artista, você gostaria de passar para as pessoas? 

Bem, quero dizer que a arte é capaz de transformar pessoas e lugares e ela faz isso diariamente no Brasil. Nossa alegria e trabalho são remédios também. Isso ficou ainda mais evidente na pandemia, quando as lives dos artistas traziam alento e entretenimento. Nossa cultura é nossa maior riqueza e merece ser valorizada. Valorizem e acompanhem o trabalho de artistas independentes, o trabalho de mulheres pretas e periféricas, porque o corre é dobrado e é cheio de verdades.

Se quiser acrescentar algo, por favor, fique à vontade.

Ah, como primeira entrevistada da “Além do Quadradinho - Cultura por toda parte”, do Jornal de Brasília, gostaria de agradecer pelo convite e oportunidade de contar um pouco sobre minha carreira e sobre o álbum. Quero parabenizar você pela coluna nova e agradecer pela abertura. A todos, a gente se vê por aí.

Conheça mais sobre a Ane ÊoKetu:

Clipe "Exu Transcendental" | Álbum completo | Instagram | YouTube

Fonte: jornaldebrasilia.com.br

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