As mãos ágeis trançam fios e histórias enquanto reforçam a identidade de meninas e mulheres. Muitas vezes, nem a trancista nem a cliente sabem a importância da arte de usar os cabelos como quem borda uma tela. Trata-se de uma prática cultural ancestral, de matriz africana, que funciona como resgate da autoestima e da sensação de pertencimento. Quem trança fala de resistência e preserva uma herança cultural. É muito mais que um adorno. É um símbolo.
Tentar descobrir e localizar quem são, onde e como vivem mulheres que passam adiante a tradição é o objetivo do projeto Tranças no Mapa, que pretende construir a 1ª Cartografia Sociocultural de Trancistas do Distrito Federal e Entorno. Financiado com recursos de quase R$ 100 mil do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal (FAC) da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do DF, o projeto é parte de um estudo ainda mais abrangente, o Fios da Ancestralidade.
Iniciado em 17 de abril e com atividades previstas até o mês de agosto, o Tranças no Mapa, idealizado e coordenado pela pesquisadora Layla Maryzandra, faz parte da pesquisa de campo do Programa de Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT) da Universidade de Brasília (UnB).
"É um projeto de valorização e salvaguarda dos modos de saber e fazer, com objetivo de construir a 1º Cartografia sociocultural no Distrito Federal e Entorno de trancistas negras. Estamos discutindo sobre identidade e território, direito à memória negra, além de realizar ações de educação patrimonial em níveis local e nacional, e especialmente, apontando ações e políticas públicas para o IPHAN, para que se torne Patrimônio Cultural", detalha Layla.
Sob a orientação da professora doutora Cristiane Portella, o projeto pretende fortalecer a prática e reforçar a necessidade de políticas afirmativas voltadas às mulheres negras que são profissionais trancistas. Para participar, é preciso ter mais de 18 anos e atuar há pelo menos dois.
No início do século XV, os penteados afro já funcionavam como um portador de mensagens na maioria das sociedades da África Ocidental, Oriental e Central, regiões de povos iorubanos, fanti-ashanti, bantos - os mesmos que foram sequestrados para as Américas, em especial para o Brasil. As tranças faziam parte de um complexo sistema de linguagem, que indicava o estado civil, a idade, o segmento religioso, a riqueza e a posição de uma pessoa dentro da comunidade. Atualmente, já é possível afirmar que trançar é uma tarefa familiar, que pentear cabelos é um ofício tão antigo e tão importante quanto qualquer atividade de subsistência.
"Os escravizados desenvolveram diferentes maneiras de subverter o sistema por meio de tecnologias e conhecimentos milenares. Trançar, usar o cabelo crespo é uma delas. Ainda vamos descobrir muito mais, ainda sabemos pouco sobre isso, porque estamos condicionados a pensar o escravizado africano na América como alguém sem condições de criar e desenvolver estratégias inúmeras de sobrevivência", afirma a pesquisadora.
é possível preencher o formulário e responder à pesquisa, além de se inscrever para participar da Oficina online de Patrimônio Cultural, em agosto 2023. Entre os questionamentos, o formulário pergunta se trançar é a principal atividade econômica da interessada, com quem ela aprendeu a arte e se ela reconhece a prática como sendo de origem africana.
Layla acrescenta que o ato de trançar é uma forma de reconhecer e preservar uma expressão cultural que é patrimônio cultural afro-brasileiro. "Também é um caminho para a valorização de um ofício que pode e deve ser garantido por iniciativas institucionais", explica a pesquisadora.
"Os argumentos, não apenas para aprovação da minha pesquisa, mas para a continuidade deste projeto está no que ele propõe, como integração entre as culturas de tradição oral e educação formal e/ou novas tecnologias culturais, sociais e científicas, desenvolvimento de processos criativos continuados, ações de formação cultural e fortalecimento das identidades culturais, além de promover a integração da cultura com outras esferas de conhecimento e da vida social", enumera.
O projeto tem forte vínculo com a história de vida da sua autora. Layla Maryzandra nasceu no Quilombo da Liberdade, em São Luís do Maranhão. "Minha avó, Raimunda do Nascimento Costa, foi a primeira a chegar em Brasília. Ela, veio para trabalhar como governanta de uma família branca do Maranhão, aqui moradora da parte nobre da cidade (Lago Norte)", detalha. Ela conta que a avó chegou a trabalhar quase 60 anos para essa família.
"Com a presença da minha avó aqui, minha mãe veio comigo e meus irmãos, na busca de qualidade de vida, emprego, repetindo a história de sair do Nordeste à procura de outras oportunidades para as gerações futuras de nossa família", explica Layla.
A pesquisadora conta que dona Raimunda sempre ressaltou que não queria as netas sendo empregadas na casa de brancos. "Ela sempre enfatizou a importância do estudo para sairmos de uma condição vulnerável economicamente e minha mãe afirma que conseguimos isso, afinal todos os filhos estudaram e nos adaptamos à cidade, buscamos nossas oportunidades. Manter nossas práticas culturais e trançar é uma delas".
Criada nas periferias do DF, Layla Marysandra começou a trabalhar como trancista aos 17 anos, para obter uma renda extra e contribuir financeiramente em casa. Ela aprendeu a técnica observando sua mãe, que sempre trançou seu cabelo.
Layla acredita que o projeto é uma forma de colocar no mapa as questões de raça e gênero. "Dialogar conjuntamente o universo dos mapas sociais nos traz a possibilidade de dar visibilidade aos poderes públicos para a elaboração de políticas públicas de reconhecimento, proteção e garantia de direitos para as mulheres negras no DF", explica.
Secec
Fonte: jornaldebrasilia.com.br