Seletividade social: Policiais entram sem mandato em casas de maioria negra

Uma pesquisa publicada no início deste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) indica que a maioria das entradas policiais em domicílio sem um mandado judicial no Brasil foi feita em residências de populações pobres, com renda familiar mensal de até um salário mínimo per capita, e de maioria negra.

Por Vale do Piancó -PB em 22/01/2024 às 23:14:21

Uma pesquisa publicada no início deste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) indica que a maioria das entradas policiais em domicílio sem um mandado judicial no Brasil foi feita em residências de populações pobres, com renda familiar mensal de até um salário mínimo per capita, e de maioria negra. No Distrito Federal não foi diferente. A pesquisa tem caráter qualitativo e foi realizada com base em outro estudo, mais amplo, feito sobre crimes de drogas em todo o Brasil, denominado "Perfil do Processado e Produção de Provas em Ações Criminais por Tráfico de Drogas", de 2023, realizado pelo IPEA em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça. Dentro do estudo primário, um dos dados que chamou a atenção dos pesquisadores do Instituto foi que, dentro dos crimes de drogas sentenciados no primeiro semestre de 2019 nos Tribunais Estaduais de Justiça do país, quase metade dos casos (49,1%) teve entradas de policiais em domicílio, com ou sem mandado judicial. Foram selecionadas, então, cinco capitais em cada uma das cinco regiões brasileiras que registraram o maior número de entradas de agentes e autoridades policiais em domicílio na respectiva região. O Centro-Oeste foi representado pelo DF, descrito na pesquisa como Brasília. A capital foi a que mais registrou casos entre os demais estados da região central, com 73 ocorrências do tipo — cerca de 23% do avaliado nas outras cinco capitais selecionadas. Nas cinco capitais, foram observadas 307 entradas de policiais em domicílio, com ou sem mandado. Dentro das capitais selecionadas – Brasília, Curitiba, Fortaleza, Manaus e Rio de Janeiro –, a pesquisa destaca que 91,2% das entradas ocorreram em bairros com renda domiciliar mensal per capita de até um salário mínimo e 84,7% ocorreram em bairros predominantemente ocupados por pessoas negras. "Apenas seis entradas [nas cinco cidades] ocorreram em bairros com renda de cinco a dez salários mínimos, das quais metade foram entradas respaldadas por autorização judicial", conclui o estudo. Destas seis, quatro aconteceram em Águas Claras (DF), onde três tiveram respaldo judicial. Portanto, a cidade reuniu todos os casos de mandado em mãos estudados na pesquisa em bairros de classe média alta. De acordo com um dos sete pesquisadores do estudo, Rafael de Deus Garcia, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) na área de Processo Penal, os bairros com maior predominância de população branca possuem o que o especialista chama de "cinturões da imunidade". "Águas Claras, que é um bairro de classe média alta [renda per capita entre 5 a 10 salários mínimos], com maior parte da população branca, foi onde houve três, de quatro casos, com mandado. Olhando nos processos, naquele em que não havia a autorização, tratava-se de uma área próxima ao Areal, fora do centro. A mesma coisa no Guará, que embora seja um bairro de classe média [3 a 5 salários mínimos], as entradas policiais acontecem na 'quebrada', entre as quadras 38 e 40", explicou. "Então até nos bairros de classe média existe uma seletividade." No DF, quase metade das Regiões Administrativas (RAs) teve a presença policial dentro dos domicílios com ou sem a autorização judicial prévia, sendo 16 das 33 cidades. Dez delas tiveram destaque por receberem a maior quantidade de agentes, sendo ao menos 49 entradas em domicílio no primeiro semestre de 2019. As cidades com maior número de entradas nas residências em ações foram Ceilândia, Gama e Samambaia, tendo entre 7 a 14 entradas em cada uma no primeiro semestre de 2019. Essas regiões são caracterizadas, segundo o levantamento, por ter, em cada uma, mais de 70% da população composta por negros e uma renda mensal média de até um salário mínimo per capita nas famílias. As outras sete RAs com maior concentração de entradas policiais com ou sem mandado judicial foram Águas Claras, Guará, Itapoã, Planaltina, Recanto das Emas, Santa Maria e Taguatinga. Cada uma teve entre quatro a seis entradas de agentes ou autoridades no período analisado.

Situação é diferente nos bairros mais ricos

Tanto no DF quanto dentro da delimitação nacional, no período analisado pela pesquisa, não houve registro de entrada domiciliar em bairros com renda superior a dez salários mínimos – onde a população é majoritariamente composta por pessoas brancas, diz o estudo. "A nossa hipótese era de que há um predomínio de entrada em bairros periféricos, de pessoas majoritariamente negras. E outra hipótese secundária era de que, se ocorresse entrada em domicílio em bairros ricos com população predominantemente branca, haveria a presença da autorização judicial. Ocorre que não observamos qualquer tipo de entrada nos bairros mais ricos [acima de 10 salários mínimos], com ou sem mandado. Daí nossa conclusão de que são bairros praticamente imunes a esse tipo de policiamento, o policiamento domiciliar", destacou Rafael. Quando comparados os dados recolhidos das entradas em domicílio com ou sem mandado judicial com base na cor de pele, os casos sem a autorização prévia aconteceram em dobro com a população negra. Enquanto 22,4% ocorreram em casas de maioria branca, 46,1% das entradas foram realizadas em residências de pessoas negras. Por outro lado, quando houve autorização judicial prévia, a diferença diminuiu e passou a ser de 4,5 pontos percentuais. Nestes casos, as entradas em casas de pessoas brancas abrangeram 30,2% das situações, ao passo que 34,7% delas compreenderam domicílios de pessoas negras.

"Asilo inviolável"

A Constituição Federal do Brasil estabelece que "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial". Portanto, a entrada policial nas residências não é indevida, desde que haja alguma infração da Lei em caso flagrante. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que "a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito". Caso contrário, os agentes estarão sujeitos a penas de responsabilidade disciplinar, civil e penal, e de nulidade dos atos praticados, isto é, a não validação das ações realizadas. A pesquisa indica que em 45% dos casos "há entrada em domicílio direta, quando o réu já estava no interior da residência, sem registro da motivação ou sem maiores informações a respeito das circunstâncias". "Em 26,3%, há informação de que já havia acontecido o flagrante na rua, e a diligência policial teve continuidade no domicílio dos réus", descreve o texto do levantamento. "Em 20,6% dos casos houve abordagem em local público sem flagrante, a autoridade policial foi levada à residência do réu, onde foram encontradas drogas e, posteriormente a isso, ocorreu o flagrante. E apenas em 15,6% dos casos há registro de que a entrada em domicílio se deu em cumprimento de mandado de busca e apreensão", destacou ainda em relação aos casos da pesquisa nacional.

Falta de rigor judicial

A pesquisa conclui que há um abuso no policiamento, descrito como racialmente e geograficamente seletivo. A solução proposta para a problemática levantada é "exigir-se, com mais força e intensidade, autorizações judiciais para entradas em domicílio nos crimes de drogas, sob pena de nulidade", diz um dos trechos do estudo. "Tratando-se de crime sem vítima imediata, sem ameaça a direito de terceiro ou perigo iminente à pessoa, e considerando que a descoberta de crime de drogas no interior das casas sucede-se a atos de natureza investigativa, é mais do que razoável exigir-se autorização judicial para entrada em domicílio mediante fundamentação da suspeita do crime", defende o texto. "Essa posição [...] pode conferir maior força normativa à proteção ao lar para uma parcela da população que hoje está sujeita a constantes violações ao seu direito de inviolabilidade domiciliar."

Fonte: jornaldebrasilia.com.br

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