Pedagoga demitida após levar noiva a confraternização passa a trabalhar para defender os direitos LGBTQIA+

Por Vale do Piancó -PB em 17/05/2022 às 10:27:42
Subnotificações de casos semelhantes atrapalham combate à violência na Paraíba. Procurador do Trabalho afirma que por medo, muitas vezes as próprias vítimas não querem denunciar. Aniely Mirtes e a esposa, Maria Edivania

Aniely Mirtes/Redes sociais/Arquivo pessoal

Lésbica, preta e casada, a pedagoga Aniely Mirtes foi pega de surpresa ao ser demitida quando trabalhava em uma escola particular e tradicional de João Pessoa. A notícia veio depois de uma confraternização de fim de ano entre os funcionários, onde ela levou sua noiva. O Dia Internacional de Combate à Homofobia, Bifobia e Transfobia é celebrado nesta terça-feira, 17 de maio, e foi justamente por conta de episódios como esse que Mirtes decidiu ir à luta: “dessa forma, eu procuro superar como meus direitos foram e são violados”.

Hoje com 42 anos, dois filhos LGBT e avó, a pedagoga atua como agente de direitos humanos em um Centros Estaduais de referência para a população LGBTQIAP+, o Espaço LGBT Pedrinho, em João Pessoa.

“Hoje eu tento me esforçar para que essas experiência que sofri de lesbofobia, e no meu caso enquanto mulher negra até racismo também, eu procuro convertê-las nessa garra de trabalhar com essas pautas e na defesa da garantia de direitos a essas pessoas”, explica.

A data marca a exclusão dos termos "homossexualismo", que traz um sentido relacionado à doenças, e homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 17 de maio de 1990.

Apesar dos avanços, a sociedade ainda não chegou em um patamar muito igualitário. Atualmente, profissionais LGBT ainda sentem que expor identidade ou orientação no trabalho afeta a carreira. Não só isso, 38% das empresas ainda têm restrições para contratar LGBTQI+.

“Na fase contratual, são comuns perseguições, humilhações e assédios a LGBTS, muitas vezes, culminando com pedidos de demissão por não suportar o ambiente tóxico”, disse o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT-PB), Eduardo Varandas.

Pedagoga atua como agente de direitos humanos em um Centros Estaduais de referência para a população LGBTQIAP+

Aniely Mirtes/Redes sociais/Arquivo pessoal

'Não tenho nada contra a senhora, mas eu vou ter que te demitir'

A recomendação que Mirtes recebeu em 2018 para a confraternização de funcionários da escola, quando a lesbofobia culminou em sua demissão, era simples: todos poderiam levar acompanhantes, contanto que eles fossem os noivos/noivas ou esposos/esposas do empregado.

“Foi até cômico porque nós noivamos exclusivamente para eu poder levá-la, então botamos cada uma uma aliança na mão direita, já que o grau de parentesco tinha que ser de noiva pra casada, não poderia ser namorado ou namorada”, explica a pedagoga.

Quando ela chegou na festa, logo se formou o burburinho e as perguntas constrangedoras e irônicas que lésbicas costumam a receber sobre suas companheiras: "ela é sua amiga? Prima? Irmã?".

Apesar dos questionamentos, Mirtes se manteve firme, afinal, não estava fazendo nada de errado: "estávamos com alianças reluzentes e realmente não estávamos escondendo a ninguém”, ela conta.

Durante a semana seguinte ao evento, ela ainda teve que enfrentar por diversas vezes o mesmo questionamento: quem era aquela que havia levado pra festa. Mirtes conta que muitas vezes sentia a ironia na pergunta e sabia que seu colega de trabalho perguntou apenas para constrangê-la.

No final da semana, a grande surpresa. Ao receber o seu pagamento do mês, foi chamada na diretoria e, sem nenhuma reclamação, aviso ou puxão de orelha prévio, foi demitida.

"Professora, eu não tenho nada contra a senhora, mas eu vou ter que te demitir porque eu recebi aqui uma recomendação de que eu lhe demitisse”, disse Mirtes relembrando as palavras do diretor do local.

No momento, ela não só teve a sensação, mas certeza de que a demissão era em decorrência de ter levado sua noiva à confraternização escolar. Ela conta que ficou muito explícito, já que não tinha sido chamada atenção pela empresa nenhuma outra vez, por nenhuma questão.

“A gente sabe que a LGBTfobia tem suas nuances, seus desdobramentos e com cada letra do segmento existem especificidades também nas práticas das violências. Me senti realmente violentada do meu direito enquanto mulher lésbica, tendo sofrido violência simbólica, que também se desdobra na violência psicológica”.

Aniely Mirtes e a esposa, Maria Edivânia

Aniely Mirtes/Redes sociais/Arquivo pessoal

Segundo ela, o ambiente de escola privada é um ambiente muito preconceituoso, mas não só isso: empresas não estão preparadas para receber e contratar pessoas LGBT+.

Ela acabou não formalizando uma denúncia, por estar desgastada e entender que em casos de violência simbólica é difícil se provar que houve uma violência — já que muitos não querem testemunhar e na grande maioria das vezes, não existir provas materiais do ato.

É por isso que essas violências muitas vezes são encobertas. Segundo Eduardo Varandas, o próprio Ministério Público do Trabalho encontra muitas dificuldades neste tipo de investigação:

"Primeiro, as próprias vítimas não querem denunciar. Segundo, quando há a denúncia, a questão é difícil ser provada, principalmente na fase pré-contratual, já que o motivo da não contratação é velado. Depois, há dificuldades de apresentar testemunhas para comprovar o fato discriminatório", explica.

Representantes do movimento LGBT na Paraíba em protesto

Daniel Peixoto/G1

Subnotificação ainda é um problema

O g1 sentiu dificuldades em encontrar dados acerca da população LGBT+ que não fossem de crimes violentos letais e intencionais (CVLI).

"Mesmo com todo esforço dedicado à elaboração de bancos de dados e relatórios, os números de assassinatos que temos hoje em nosso Estado ainda são subnotificados, seja pela falta de informações, seja pela invisibilidade dada a tantos casos", disse a Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana (SEMDH-PB) em nota.

O coordenador de Promoção à Cidadania LGBT e Igualdade Racial, Geraldo Filho, afirma que por exemplo, só pode levantar dados de quem procura as coordenações estaduais.

Um estudo geral, em termos de população do estado, ainda não existe. Nem mesmo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) fazia pesquisas acerca do tema. O dia 25 de maio de 2022 será a primeira vez que o Instituto vai divulgar dados sobre orientação sexual da população brasileira, decisão que aconteceu depois do Ministério Público Federal questionar o fato de o Censo Demográfico de 2022 não ter incluído perguntas sobre a população LGBTQIA+.

Por isso, a subnotificação dessas violências ainda é uma realidade, principalmente no que cerne violências simbólicas e psicológicas.

Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI), que são registrados nas delegacias, são a etapa final de uma descriminação que é sintomática na sociedade e se apresenta de muitas formas além da agressão física— e esses números ainda são alarmantes na Paraíba.

No quinquênio entre 2017 e 2021, foram contabilizados 62 assassinatos de pessoas da comunidade LGBTQIAP+ no Estado da Paraíba, conforme dados da SEMDH-PB, solicitados pela Lei Federal de Acesso à Informação.

No ano de 2017, 69% dos casos de foram elucidados, em 2018 houve 46% de elucidação dos casos, em 2019 este percentual cresceu e alcançou 80% de elucidações dos casos, ao passo que em 2020 este percentual está até o momento em 50% de assassinatos elucidados.

Quando observamos o quantitativo por cidades e municípios, João Pessoa detém o maior número em assassinatos de LGBTQIAP+ nos anos de 2017 a 2021, alcançando o número de 28 CVLI, o que corresponde a, aproximadamente, 45% dos casos.

Quanto ao perfil das vítimas, aproximadamente 53% eram gays, enquanto aproximadamente 38% eram pessoas trans do gênero feminino. A grande maioria com jovens com idade entre 18 e 34 anos.

Ainda conforme a secretaria, o ano de 2021 pode ser considerado um ano atípico, quando os números mostram estar fora da curva em comparação com outros anos deste quinquênio, contabilizando pelo menos seis casos.

A luta é diária

Hoje com um filho de 23 anos gay e filha de 15 anos que se denomina bissexual, Mirtes além de trabalhar na coordenadoria estadual, faz um trabalho de empoderamento feminino e LGBTQIA+, além da difusão da cultura afro-brasileira, no Grupo de Mulheres Lésbicas e Bissexuais Maria Quitéria e é presidenta municipal do Conselho de Direitos LGBT, também compondo os Conselhos Municipais de Saúde da Mulher.

Como mãe, a compreensão e aceitação da vivência de seus filhos é tranquila, mas ela faz questão de reiterar que enquanto mães lésbicas, o julgamento em cima dela e sua esposa é ainda maior:

Na foto: Maria Edivania, Aniely Mirtes e o filho delas

Aniely Mirtes/Arquivo pessoal

“Porque se um filho de uma lésbica der, conforme o julgamento da sociedade, para o que 'não presta' é porque eram filhos de lésbicas. Nós não temos uma família que é 100%; que aceita. Então, tem também membros da família que culpam: "ah o filho é gay porque a mãe é lésbica, ah a filha agora é sapatão porque o exemplo que tem em casa é de uma mãe lésbica". Então, é uma relação que parte do principio que o preconceito é algo que vamos ter que lidar pro resto da vida".

No seu trabalho diário, ela acolhe denúncias e encaminha aos órgãos de competência; dá suporte psicossocial, por meio de terapias individuais e coletivas; acesso a programas governamentais e de assistência social; fornece assessoria jurídica e outras formas de ajuda institucional.

Ela acredita que é o sistema de política afirmativa que pode realmente reeducar as pessoas e mudar o quadro geral discriminatório na sociedade: é preciso sair para ações práticas, como separar uma porcentagem de contratação para essas pessoas sub representadas na sociedade em empresas, para que LGBTs estejam em funções de real visibilidade.

“ A gente tanta passar para nossos filhos, que a sociedade não é tão arco-íris como pintam nas redes sociais, mas que a realidade é bem diferente (...) foi por essa e outras injustiças que sofri e sofro até hoje que para mim é tão importante atuar profissionalmente na defesa dos direitos das classes sub representadas. A meu ver, só há conquista de direitos se houver conquista de espaço", disse.

Centro de Referência da Mulher divide sede com Espaço LGBT

TV Paraíba/Reprodução

Procure apoio e denuncie

A Procuradoria Regional do Trabalho da Paraíba, ainda em 2013, foi a primeira no Brasil a fazer campanhas de combate à LGBTfobia no mercado de trabalho e até hoje promove propagandas que são vinculadas em redes de televisão aberta do estado.

Hoje, o órgão atua principalmente através da Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho.

"Uma das metas da coordenadoria, além do combate à discriminação, é inserção de LGBTs, em vulnerabilidade social, no mercado de trabalho. Proporcionamos em vários Estados da Federação cursos de formação profissionais para LGBTs em estado de vulnerabilidade social: assistente de cozinha, manicure, cabeleireiro, modelo de passarela, etc", afirmou Eduardo Varandas.

O órgão atua na combate à discriminação em todas as suas formas, seja na fase pré-contratual ou durante o decorrer da prestação de serviços; na discriminação vertical (de superiores hierárquicos); ou na horizontal (dos demais colegas de trabalho).

Levantamento mostra que, entre 2017 e 2021, foram contabilizados 62 assassinatos de pessoas da comunidade LGBTQIAP+ no Estado da Paraíba

Wagner Magalhães/G1

Ele afirma que a grande arma contra a discriminação é também a educação e conscientização. Segundo ele, empresas devem promover palestras e campanhas no meio laboral para disseminar nos seus colaboradores o respeito à diversidade humana, mas também deve coibir, inclusive com as punições previstas na CLT, qualquer ato discriminatório.

"Em qualquer hipótese, a empresa deve ser responsabilizada porque é seu dever manter um ambiente de trabalho em que se preze pela dignidade do ser humano e o valor social do trabalho (primados da Constituição). Instauramos inquérito civis, firmamos termos de ajuste (TAC) e, se for necessários, propomos, na Justiça, ações buscando o ressarcimento de danos coletivos", explica o promotor.

Denúncias podem ser feitas no Disque 100 e Disque 123. O Espaço LGBT também pode acompanhar o caso através dos números (83) 9 9119-0157 para João Pessoa e (83) 9 9163-3465 para Campina Grande.

Os espaços funcionam das 8h às 16h30. Em João Pessoa o endereço é na Av. Princesa Isabel, 164 - Centro, e em Campina Grande funciona na rua Rua Pedro I, 558, Bairro São José.

*Sob supervisão de Krys Carneiro

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