Aula de superação

Acostumado a ensinar seus alunos a solucionar problemas nas aulas de matemática e de física que ministrava na Universidade do Oriente, em sua cidade natal Maturin, na Venezuela, Jose Francisco Dominguez Martinez percebeu que, ao contrário das ciências exatas, o mundo real não tem qualquer lógica ou coerência e precisou aprender a calcular as probabilidades de sua própria vida.

Por Vale do Piancó -PB em 29/05/2023 às 06:21:11

venezuelano-jose-martinez

Acostumado a ensinar seus alunos a solucionar problemas nas aulas de matemática e de física que ministrava na Universidade do Oriente, em sua cidade natal Maturin, na Venezuela, Jose Francisco Dominguez Martinez percebeu que, ao contrário das ciências exatas, o mundo real não tem qualquer lógica ou coerência e precisou aprender a calcular as probabilidades de sua própria vida. Nessa equação, usou a fórmula do otimismo, subtraiu seus medos e multiplicou a esperança de um recomeço.

Engenheiro mecânico de formação e professor por opção, Jose, 52 anos, foi ameaçado e perseguido por uma década pelo governo de seu país por usar a educação como ferramenta social para desenvolver a autonomia e o senso crítico da sociedade em um sistema político instável. Seu crime? Transmitir conhecimento para garantir a liberdade de expressão.

Ao ver a universidade em que lecionava completamente destruída por simpatizantes do governo vigente e a hiperinflação 'comer' praticamente todo o salário, Jose Dominguez decidiu que era hora de mudar. "Não havia alimentos, o dinheiro havia sumido dos bancos e a insegurança de modo geral era muito grande", lembra.

Universiade do Oriente depredada, em janeiro de 2021. Foto: Reprodução

Atordoado pelas ameaças de prisão e sem opção, foi num sonho que viu o seu destino: Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, no Brasil. Em 2018, após ver fotos da capital gaúcha em seu smartphone, o venezuelano deixou a família e todos os bens que conquistara em sua trajetória profissional e partiu para a fronteira, em Roraima, com algumas roupas e apenas 200 dólares no bolso. Sua casa de três quartos (avaliada em US$ 70 mil, segundo ele próprio calcula), dois carros e até o tempo de serviço para a sua aposentadoria ficaram para trás.

"No momento em que cheguei à fronteira entre o Brasil e a Venezuela, ergui os braços como se estivesse carregando um peso e, simbolicamente, deixei todas as lembranças e dores do lado do meu país para seguir adiante na minha vida", recorda, com os olhos marejados.

Já em solo brasileiro, Jose Domingues conseguiu residência brasileira e procurou uma prima que havia deixado a Venezuela há algum tempo e morava com a família em uma casa muito humilde. "Fiquei três meses em Boa Vista-RR vivendo na varanda da casa da minha prima em uma rede. Ela também passava por dificuldades e não podia me oferecer mais do que um lugar para dormir", relata.

Dados

De acordo com a Plataforma Interativa de Decisões sobre a Condição de Refugiado no Brasil, desenvolvida pela Agência da ONU para as Migrações (OIM), o Observatório das Migrações Internacionais (ObMigra) e pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Jose e a prima estão entre os pouco mais de 900 mil venezuelanos que entraram no Brasil.

O relatório, elaborado em parceria com a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), aponta que a maioria entrou pela fronteira Norte, desde janeiro de 2017 até abril de 2023, em busca de atendimento médico, alimentação e emprego. De acordo com a publicação, no entanto, quase metade dos migrantes venezuelanos decide seguir para outros países.

Dos 121 países relacionados na pesquisa, a Venezuela apresenta de longe o maior número de refugiados, 70%. O segundo colocado na lista é a Síria, com pouco mais de 5% de solicitantes dessa condição. Do total, cerca de 385 mil conseguiram residência temporária ou permanente. E ainda segundo o estudo, 52% são homens e 48%, mulheres.

36% dos venezuelanos que entram no Brasil têm entre 30 e 59 anos e 33% estão na faixa de idade entre 18 a 29 anos. Chama a atenção o grande número de crianças nos deslocamentos migratórios: 20% têm entre 0 e 11 anos de idade.

Para absorver tanta gente, o governo brasileiro criou a Operação Acolhida, uma estratégia de interiorização para integrar os venezuelanos e ajudá-los a encontrar empregos e a se reunir com familiares em outras partes do país. De acordo com os dados oficiais, mais de 100 mil pessoas já foram realocadas para mais de 930 cidades brasileiras.

Apesar da saudade da família e de seu país natal, Jose sabe que tomou a decisão certa. "Eu poderia passar fome ou até ser preso na Venezuela. Sabia que, ao me mudar para o Brasil, eu atravessaria momentos difíceis. Mas todos caímos em algum momento na vida. A ideia é se levantar rápido e seguir adiante. Chorar no chão não é para mim, afinal há dias bons e ruins e precisamos nos superar sempre", ensina, resignado.

A chegada em Brasília

Os 200 dólares só duraram quatro dias. Para sobreviver, o engenheiro mecânico precisou vender frutas em semáforos, capinar terrenos e fazer todo tipo de bicos enquanto estava em Boa Vista-RR. E foi em um desses trabalhos temporários que sua vida começou a melhorar. Pela sua formação acadêmica, Jose foi chamado para consertar o ar-condicionado de uma empresa e, ao contrário do que outros profissionais afirmaram ao proprietário, ele verificou que o aparelho não estava quebrado. "Alguns técnicos disseram que o compressor havia estragado. Mas era apenas o controle remoto que precisava de pilhas novas".

Surpreso com a honestidade de Jose, o empresário Salim Barbosa decidiu ajudá-lo e contactou o amigo Assis Marodin, que morava no Distrito Federal e integra uma rede de apoio informal e voluntário aos refugiados. "Pouco tempo depois, o Seu Salim disse que conseguiu um emprego para mim, mas em Brasília. Busquei informações no meu celular e vi que pelo menos a capital federal ficava mais perto de Porto Alegre", recorda Jose, sorridente.

Assim como Salim Barbosa, o empresário Assis Marodin sempre foi empenhado em ajudar de maneira irrestrita os refugiados que chegam ao Brasil. Desta forma, pagou a passagem aérea de Jose para Brasília e o empregou como operador de máquina na madeireira da família no Café sem Troco, comunidade localizada a 50 quilômetros do centro da capital federal e que pertence à Região Administrativa do Paranoá.

"Cheguei em Brasília, vi o quanto a cidade era linda, mas logo o senhor Assis me levou para o Café sem Troco onde comecei a trabalhar em seguida", diz.

De acordo com a base de dados do Conare e da ACNUR referente à Operação Acolhida, desde 2018, estima-se que 2559 venezuelanos pediram refúgio ou foram registrados no DF, informa à reportagem a assessoria de Comunicação da agência da ONU. "O número pode não corresponder ao local de moradia atual dessas pessoas, já que elas têm direito de transitar livremente no território nacional", destaca.

Rede de amigos do bem

Pouco tempo depois, no entanto, ao saber que o migrante venezuelano possuía curso superior, Assis se comoveu e conseguiu um trabalho mais próximo à área de formação dele. "Ele era muito esforçado e tinha uma boa vontade incrível, mas era um trabalho braçal. Quando descobri que ele era formado em engenharia mecânica pedi a um amigo, o Marcos, que tem uma indústria de ração lá mesmo no Café sem Troco, para oferecer uma oportunidade a ele", conta Assis.

Foi assim que, oito meses depois de chegar ao DF, Jose começou a trabalhar como mecânico industrial. Em 2023, ele completará cinco anos na mesma empresa — e com carteira assinada. Apesar da segurança no emprego, Jose usa seu carro e recorre a aplicativos de transporte, como muitos brasileiros, para garantir uma renda extra.

Com residência fixa, cidadania brasileira e um salário melhor, Jose trouxe para o Brasil, no ano seguinte, a mãe, que estava doente e desamparada pelo Estado venezuelano. Além de estar debilitada, dona Luisa sentia muita falta de Jose, com quem morava na Venezuela. Mas a situação ficou insustentável quando o governo cancelou a aposentadoria e uma pensão com as quais ela vivia. "Fico triste porque perdi a minha casa e tento não lembrar do resto da família que ficou no meu país para não sofrer tanto com a ausência deles", lamenta a mãe de Jose. "Sinto muito orgulho do meu filho pela coragem, pela força de vontade e pela honestidade dele", completa a matriarca.

Jose e a mãe, dona Luisa. Foto: acervo pessoal

Em 2020, Jose trouxe o casal de filhos que, segundo ele, estava sendo vigiado pelos agentes do governo venezuelano. A menina, de 21 anos, segue o caminho do pai e cursa Matemática em uma faculdade no DF. O filho, de 23 anos, preferiu ir morar com a mãe no Peru.

Depois de todas as dificuldades que viveu aqui no Brasil, Jose Domingues sente-se feliz por tudo que realizou até agora e atribui à vontade divina suas conquistas. "Quando Deus mostrou Porto Alegre no meu sonho, não era para eu ir para a capital do Rio Grande do Sul. Na verdade, ele queria me mostrar que era para eu encontrar o senhor Assis, que é natural de Porto Alegre. Esse gaúcho me ajudou muito e serei eternamente grato", interpreta o venezuelano.

Religioso e engajado em causas sociais, sobretudo na situação dos refugiados, Assis Marodin não só garantiu emprego e moradia para Jose e para dezenas de venezuelanos. Ele também ajudou a legalizar muitos deles. Pelas contas do empresário, 23 famílias receberam seu auxílio. "Montamos uma casa para abrigar essas pessoas que precisavam de ajuda. Nos últimos anos, conseguimos ajudar entre 60 a 90 pessoas", contabiliza.

Em resposta à reportagem, Marodin se mostrou muito preocupado com a condição dos refugiados e se emocionou várias vezes ao falar sobre a chegada deles no Brasil. "Muitas dessas pessoas caminharam cerca de 700 quilômetros até a fronteira. Passaram fome e necessidade. É difícil explicar a minha alegria em ver esse pessoal podendo cozinhar arroz, feijão e carne nas casas que eu aluguei para eles. Eles podiam dormir em camas e dar brinquedos para as crianças. Pude oferecer até berço para crianças de colo", conta Assis entre lágrimas.

De acordo Análise Conjunta das Necessidades de Refugiados e Migrantes da Venezuela no Brasil, publicada na Plataforma de Coordenação Interagencial para Refugiados e Migrantes da Venezuela (R$V), o Brasil acolhe a quinta maior população de venezuelanos deslocados da América Latina. Estima-se que mais de 400 mil refugiados e migrantes da Venezuela encontram-se atualmente no Brasil, segundo dados do Sistema de Tráfego Internacional da Polícia Federal. Em média, 15 mil venezuelanos entram no Brasil mensalmente.

Diante dessa realidade, o empresário Assis Marodin acrescenta: "é gratificante ver nos olhos das crianças e dos pais delas a alegria de estarem sendo acolhidas no Brasil. Eu posso garantir que vale a pena demais ajudar o próximo, fazer as pessoas felizes e resgatar a esperança e a autoestima de alguém que foi oprimido".

A volta por cima

O maior objetivo de Jose Dominguez era conseguir revalidar o diploma de Engenheiro Mecânico para voltar a atuar na sua área de formação. Após enfrentar o processo burocrático por quase três anos, em julho de 2022, ele finalmente recebeu o certificado de revalidação da Universidade de Brasília (UnB).
De acordo com a assessoria de Comunicação da ACNUR, de 2016 a 2022, a agência da ONU apoiou 20 processos de revalidação de diploma na UnB. Cinco foram pedidos de pessoas venezuelanos, 12 sírias, 1 palestina, 1 cubana e 1 nigeriana. Desse total, 4 foram deferidos, 4 indeferidos, 6 recusados e meia dúzia estão em andamento.

O objetivo de Jose a partir de agora é se empenhar para conseguir um emprego como engenheiro e, principalmente, voltar a lecionar. "Quero exercer a minha profissão, mas, principalmente, sonho em voltar a dar aulas aos jovens", declara.

Diploma de Jose Dominguez. Foto: acervo pessoal

Mas antes de retornar à sala de aula, o professor Jose Dominguez ensina ao mundo, com suas atitudes e sua força de vontade, uma lição de coragem e resiliência. Todos que se aproximaram dele nos últimos cinco anos perceberam que desistir nunca foi uma opção.

E que, apesar das dificuldades, a honestidade atrai boas pessoas para amparar quem mais precisa. É o paradoxo do mundo: Jose precisou viver as terríveis consequências de uma ditadura, o sofrimento de deixar tudo para trás, para conhecer pessoas como o Salim, o Assis, o Marcos e muitos outros que investem seu tempo e os próprios recursos para ajudar a quem necessita. Apenas para praticar o bem.

O professor de matemática que se tornou um número em relatórios de imigração e entrou para as estatísticas de refugiados tirou a prova real da operação nada lógica da vida. Se a defesa pela educação foi o argumento dos opressores para persegui-lo, foi graças à sua formação acadêmica e a capacidade de resolver problemas desenvolvida nas ciências exatas que Jose conseguiu mostrar que algumas vezes a ordem dos fatores vividos podem, sim, alterar o resultado da nossa existência.

"Viver é estar bem com o ambiente e com as pessoas. É ser feliz apesar das dificuldades. As coisas ruins acontecem porque precisamos aprender. A vida é assim", ensina o maestro.

Fonte: jornaldebrasilia.com.br

Comunicar erro

Comentários

Anuncie Aqui